Escrevo essas linhas para expressar o meu descontentamento com a atitude do Santander Cultural, mas também para refletir sobre o que significa o encerramento prévio de uma exposição de arte.
Há três semanas, visitei uma exposição no Santander Cultural: a Queermuseu – Cartografias da diferença na América Latina. A amostra apresentava mais de 270 obras do século XX até os nossos dias. Era um diálogo aberto com a diversidade de gênero, consequentemente estabelece um confronto entre valores convencionais de sexualidade e religião.
A exibição segue exemplos de outras exposições associadas ao termo Queer, o qual já ocorre em cidades europeias, como Berlim e Londres.
Acredito que tenha sido a primeira vez que um tipo de exposição desse porte e com esse recorte é feito na América Latinas. Também, penso que seja também a primeira vez que uma instituição encerra por covardia de manter um diálogo aberto. Não podemos negar o nosso inéditismo.
A notícia de encerramento da exposição
Neste domingo, 10 de setembro, o Santander Cultural comunicou um pedido de desculpas e o encerramento da exposição.
O argumento principal foram as críticas que a instituição recebeu por causa da exposição. Assim que li a nota, questionei-me se realmente eram crítiacas ou, se tratava de um puro descontentamento com o que algumas pessoas viram na exposição.
Penso que, mesmo com todo o avanço que temos às vezes precisamos nos voltar ao passado e ver se realmente aprendemos aquilo que deveríamos ter aprendido. Lembro de um texto do Machado de Assis no qual ele refletia sobre o ideal do crítico. Ele dizia que para fazer uma crítica “é preciso ter alguma coisa a mais do que o simples desejo de falar a multidão”.
Li os comentários no Facebook sobre a exposição. E as ditas críticas, não passavam de reclamações de quem se viu incomodado pelas imagens expostas, baseadas apenas no simples desejo de falar a multidão. Parece que o ator de Dom Casmurro ainda não perdeu o seu brilho.
A promoção de um debate não se dá em portas fechadas
Em nota, a instituição expressou que busca promover o debate. A atitude, no entanto, mostra o contrário. Encerrar a exposição baseado no argumento de que algumas pessoas não gostaram mostram apenas que estamos muito distante do que uma vez foi chamado de debate. E não me refiro apenas ao Santander, nós como como sociedade não conseguirmos promover um debate racional sobre qualquer assunto.
Talvez, a verdade é que não vivemos em uma democracia. Ao contrário da ditadura da maioria, estamos subjugados a opinião de poucos que influenciam e que podem encerrar uma exposição que promovia o diálogo. Uma exposição que buscava a reflexão sobre questões tão presentes. Questões que ao poucos saem das sombras das vidas privadas e chegam ao conhecimento público.
Enxergo esse ato de encerramento como uma covardia. Uma prova da fragilidade dos dias em que vivemos. Se o problema, fosse o tema da instituição ou a agressividade das imagens, então errou o museu ao permitir que ela fosse aberta. Não acredito que os curadores tenham o poder de obrigar instituições a abrirem seus espaços.
Se errou ao abrir, erro maior foi o de encerrar, da maneira como foi feita. Não acredito que os reais motivos tenham sido as reclamações das pessoas, não vi nenhum movimento de abaixo assinado ou algo maior que justificasse isso.
Parece-me mais a influência de poucas pessoas ou de algumas instituições que foram ofendidas pela abertura do diálogo. Afinal algumas imagens questionavam sim símbolos e crenças convencionais. Convencionais, mas não os únicos símbolos de nossa cultura.
O caso da Fonte de Duchamp
Eu fico pensando naquele famoso caso da Fonte de Duchamp. Então ele também seria banido de um museu porque a direção se vira ofendida. E quase o foi, exceto que quando o diretor soube que a obra era de Duchamp, mudou de ideia. O artista já tinha culhões aquela altura.
Quando impedimos uma expressão artística de circular, apenas demonstramos a visão estreita e míope que temos. Não percebemos o que esta em jogo. Duchamp provocou uma reflexão em relação as artes para que pudéssemos avançar, mas questionou também o próprio poder que o museu tem em dizer o que podemos ou não ver. Talvez, seja necessário um outro Duchamp em nossos tempos.
A exposição QUEERMUSEU dialogava com conceitos e modelos de pensamento que precisam ser questionados para que possamos refletir a respeito e aprender com isso. E principalmente evoluir como seres humanos.
Se engana quem pensa que trata-se apenas de uma afronta a símbolos. A questão não é apenas de fé ou de ideologia. É uma questão de política. Trata-se da inclusão de todas as pessoas que ficaram de fora do diálogo por séculos.
Uma exposição não deve apenas provocar reflexões positivas
Uma dos argumentos para o encerramento é que a exposição não provocava reflexões positivas. Eu pergunto: em que sentido o Museu do Holocausto em Berlim promove uma reflexão positiva? ou os campos de extermínio de Auschwitz, na Polônia?
Esse dois locais não trazem reflexões positivas. Trazem vergonha ao pensar que como seres humanos somos capazes de cometermos tanta maldade e crueldade. Mas eles tem o seu papel. É importante, talvez fundamental lembrar dessas atrocidades, pois apenas mantendo vivas essas memórias é que conseguiremos evitar que elas aconteçam novamente.
Eu gosto de pensar que uma característica que todo ser humano tem é a capacidade de pensar. No entanto, me parece que às vezes esquecemos disso. Precisamos ser lembrados que podemos pensar, ainda mais em tempos como esses em que as injustiças estão cada vez mais presentes. Pensar e refletir sobre as coisas que estão acontecendo, independente de ideologias ou de uma fundamentalismo primitivo.
Uma exposição que chocou, que provocou o pensamento não é uma exposição que ofende. É uma exposição que mostra que o trabalho de curadores e de artistas foi alcançado.
Segundo muitos pensadores e filósofos, uma das funções da arte para a sociedade é justamente provocar. É esta a força que arte carrega em si: de nos provocar, de nos refletir sobre quem somos.
E, se algumas pessoas forem ofendidas no processo que bom. É sinal de que a arte os tocou, que o trabalho dos artistas está muito bom, que a sociedade deve avançar. E que um dia poderemos melhorar.
Cancelar uma exposição com base em críticas e não levar em consideração o todo não é apenas um ato desrespeito contra aqueles que apreciam a arte ou aqueles que trabalharam. É uma afronta ao pouco que nos sobrou de um estado democrático. É a prova concreta que não avançamos em questões de gêneros e de igualdade social.
Ainda vivemos sobre as sombras, cada vez mais presentes da tríade: tradição, família e propriedade. Algo que já deveríamos ter superado a anos. Já sabemos que o catolicismo não é a única religião do país, nem mesmo é a principal, mas há muita gente insistindo nisso. E mesmo que fosse, questionar o poder de uma instituição não é questionar a fé de quem acredita em deus.
O encerramento de uma exposição por tais motivos é negar a nossa oportunidade de poder dialogar a respeito. Sinto-me como se estivesse no jardim de infância e um colega meu contou à professora que eu disse nome feio. Estou de castigo por ter dito nome feio. Estamos todos de castigo porque dizemos um palavrão chamado diálogo.