Dia desses, de um sol forte e brilhoso, convidativo para um passeio, resolvi ir até uma praça para ler e respirar ar puro. Circulei pela praça até encontrar um lugar propício para a leitura.
Lembrando-me agora, era o lugar ideal. O gramado era macio e ficava sob a proteção de uma grande árvore, que além de proteger-me do sol, também servia-me de encosto com o seu robusto tronco.
Sei mais delongas, abro o livro Mar Quente, que trago comigo e continuo a ler de onde, no dia anterior, havia parado. Não avanço muito, poucas páginas depois a leitura é interrompida. Uma frase impede-me de prosseguir.
“pular a roleta para lucrar meia passagem era o convênio com que mantinhamos com os cobradores”
A frase suscita-me memórias antigas, de uma infância, talvez pré-adolescência. Não lembro ao certo, mas aquela frase leva-me ao passado, quando eu tinha 12 ou 13.
Lembro que também fazia o mesmo, quando ia estudar em um cursinho de informática no centro de Porto Alegre. Sempre dávamos um jeito de não pagar a passagem: passando dois na catraca do ônibus pelo custo de um ou passando por baixo da roleta.
Devia ser divertido, pois lembro com alegria e satisfação.
Não era divertido passar por baixo da roleta do ônibus ou o fato de não ter dinheiro para pagar a passagem, mas lembro que com a economia de uma passagem podíamos comprar bolachas recheadas ou refrigerantes.
Em pensar que só tínhamos essa pequeno prazer porque não pagavamos a passagem.
Não sei quando comecei a aceitar ou a acreditar que precisava pagar por tudo. Não entendam que eu esteja incentivando a todos a roubarem. Não se trata disso, mas quando passávamos por baixo, os cobradores aceitavam numa boa. Eu não era o único a ir estudar, outros também iam e mesmo não me achando tão criança, eu ainda era uma criança.
Naquele tempo, não era errado ou condenável não pagar passagem, ou pelo menos não da maneira como é hoje. Para aqueles que viviam na periferia era quase que necessário passar por baixo da catraca para poder conhecer o centro cidade. Havia um entendimento de todos. Sabíamos que em poucos anos também pagaríamos pelo transporte. Acho até que podíamos dizer que era um rito de passagem.
Pular catraca de ônibus é crime
Fui crescendo e assistindo um movimento diverso dessa formação de ser humano e de caráter, mas principalmente na mudança que se tornou a relação com o transporte público.
De repente, o sistema de transporte público passou a impor regras. O ato inocente, de passar por baixo da roleta, se tornou um comportamento marginal, criminoso. Estudantes e idosos passaram a ser obrigados a terem identificação e registro para usufruirem de benefícios do transporte público.
Hoje, já não basta ser criança, tem que ter a carteira; não basta ser velho, os cabelos brancos, a pele enrugada não vale nada sem um papel que comprove que todas aquelas marcas do tempo são realmente marcas do tempo.
Nós forçaram a aceitar um discurso contra nós mesmos. Aqueles que não pagam passagens não podem andar de ônibus; se o outro não tem dinheiro não é problema meu; por que eu deveria pagar pelo problema dos outros?
Acho que nos transformamos ou nos transformaram em fiscalizadores, auditores de uma série de normas que não vem, não enxergam mais o cidadão. Quando olhamos vemos apenas um marginal que não paga passagem. Perdemos aquele nosso olhar solidário, a capacidade de enxergar um ser humano, naquele que não paga passagem.
Penso que se hoje, tentasse passar por baixo da roleta para guardar dinheiro pra merenda, eu seria tratado com cascudos e xingões; na escola, seria perseguido pelos meus colegas por não ter dinheiro nem para a passagem.
Os adultos deixariam de ver em mim uma criança que quer ir para escola, mas não tem dinheiro e passariam a me ver como um infrator que quer passar a perna nos outros.
As coisas realmente mudaram, mas que bom que ainda tem um pouco de arte e literatura para nos reavivar as memórias.
Abro novamente o livro de contos do Enio e leio novamente aquela frase, desta vez, pausadamente, tentando compreender tudo o que nela poderia conter:”pular a roleta para lucrar meia passagem era o convênio com que mantinhamos com os cobradores”.
Que outras memórias surgirão das próximas páginas?
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*extraído do conto Crocodilo e Lagartixa, da coletânea Mar Quente, de Enio Roberto.